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  • Foto do escritorLeituras são atos

Hoje, fiz uma lista de livros, e não tenho dinheiro para os poder comprar. É ridículo chorar falta de dinheiro para comprar livros, quando a tantos ele falta para não morrerem de fome.

Mas também é certo que eu vivo ainda pior do que a minha vida difícil, para comprar alguns livros – sem eles, também eu morreria de fome, porque o excesso de dificuldades na vida, a conta, afinal certa, de traições e portas que se fecham, os lamentos que ouço, os jornais que leio, tudo isso eu tenho de ligar a mim profundamente, através de quanto sentiram, ou sós, ou mal-acompanhados, alguns outros que, se lhe falasse, destruiriam sem piedade, às vezes só com o rosto, quanta humanidade eu vou pacientemente juntando, para que se não perca nas curvas da vida, onde é tão fácil perdê-la de vista, se a curva é mais rápida. Não posso nem sei esquecer-me de que se morre de fome, nem de que, em breve, se morrerá de uma fome maior, do tamanho das esperanças que ofereço ao apagar-me, ao atribuir-me um sentido, uma ausência de mim, capaz de permitir a unidade que uma presença destrói.

Por isso, preciso de comprar alguns livros, uns que ninguém lê, outros que eu próprio mal lerei, para, quando se me fechar uma porta, abrir um deles, folheá-lo pensativo, arrumá-lo como inútil, e sair de casa, contando os tostões que me restam, a ver se chegam para o carro eléctrico, até outra porta.


in “40 Anos de Servidão”

Jorge de Sena

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Excertos do conto De como o velho Jossias foi salvo das águas , um dos textos lido na sessão de 5 de abril, para sensibilização da calamidade em Moçambique causada pelas inundações decorrentes do furacão Idai (março de 2019).


(...) A chuva está a chover até os poços começaram cuspir. Mesmo os sapos e as cobras já não têm casa. E o velho pergunta:

- Por que não descansas sofrimento? Depois de depois voltas mais outra vez...

Mas o destino da morte é ser sempre muita. E chove mais, vão-se molhando as tardes de Novembro, o pilão e a esteira a pingarem juntos no pátio.

(...) Lentamente, as chuvas iam pousando em todo o lado. Os rios agarravam-se com força ao céu e já nenhum xicuembo* sabia desamarrar aquela água.

(...) Os homens queriam que ele subisse para o barco, vinham salvá-lo.

O velho coçou a cabeça, arrastando a mão de trás para a frente.

- Ir onde, se depois da água é só água? Não estão a ver que Deus nos quer peixando?


In COUTO, Mia - Vozes anoitecidas. 5.ª ed. Lisboa: Caminho, 1999. p. 125


* Xicuembo: feitiço





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Começou o miúdo a ler os rabiscos. Apesar de terem sido obviamente feitos à pressa, foram suficientes para o homem. Mas mesmo depois de ele dormir, o rapaz continuou a ler. Não se conseguiu conter. Apesar do seu pouco conhecimento das artes em geral e da literatura, ainda percebeu o seu significado e perfeição das escrituras, tão grande era a mestria de quem as escreveu. Começou a raciocinar: quem as terá escrito? Fora o homem violentamente assassinado? Será que era um poeta, que estava a fugir das realidades? Será que simplesmente encontrou a mala, mas que nem a conseguiu ter uma oportunidade de ver o seu conteúdo? E se fosse um artista, como é que teria sido a sua história? O que o inspirou a escrever? Em que situações esteve envolvido? Qual foi o seu percurso até mestre?

Muito ele se questionava, mas nada havia de lhe responder. O homem passou para outro reino, um que, de preferência queria evitar. Mas continuou a pensar e a ler, não conseguiu fechar os olhos. Estava bastante sossegado quando… Pensou ter ouvido algo. Era um som que nunca na sua vida curta tinha ouvido antes. Se calhar era um dos animais da mata? Seria perigoso? Olhou para Tuahir. Dormia um sono profundo, com um leve ressonar. O que faria ele naquela situação? Primeiro, pensou em acordar o companheiro, mas tinha estado tão cansado que receou a sua reação caso interrompesse o seu descanso. Entretanto, o som continuava a ficar mais alto. Muidinga então tentou imaginar como é que ele iria reagir naquele momento, obviamente se despertado. Iria para o autocarro? Ou iria tentar encontrar um pau afiado ou até um pedaço de ferro da viatura e tentar verificar a origem da desconcertação? De qualquer maneira, os barulhos estavam cada vez a ficar mais desumanos. Os ouvidos estavam a doer-lhe. Com o pânico e a tortura, não conseguiu reagir. No preciso momento em que os ouvidos lhe pareceram explodir… Acordou. Simplesmente. Pensava que tudo tinha sido real, que via de verdade, mas não. Ele estava muito concentrado na leitura, mas ao invés de o manter acordado, só o ajudou a adormecer mais rapidamente. Mas foi um sono diferente, pensou mesmo ter sido real… Os textos de facto eram tão hipnotizantes, até pareciam ser artefactos mágicos de histórias há muito tempo lhe contadas…

O dia seguinte chegou. O idoso não era uma pessoa muito dada a pretensões artísticas, mas o que ouviu fora algo especial. Pediu ao miúdo para ler, mais, o que obviamente também o deixou contente. Como repararam, os cadernos com ar mais denegrido e de idade tinham temas relativamente mais positivos e de mensagens de teor menos depressivo. As páginas mais recentes, contudo, mostravam sinais de rápida mudança de costumes. Parece que o autor fora uma pessoa feliz, em tempos imemoriais, mas a guerra, como tantas outras pessoas sem número, mudou para outra direção, uma direção contrária, aquela longe do céu acima de nós… Enfim, o rapaz, apesar de novo e de crescimento forçado, ainda não compreendia bem o significado de seus tempos. Tuahir era diferente. Lembrava-se muito bem da Guerra Colonial antes desta…

Mas tinham que andar, para encontrar os pais de Muidinga. Seguiram na direção que por muito tempo tinham caminhado, atentos aos bandos, mas com aquelas palavras sempre na cabeça… Sempre, sempre, sempre… Em tempo nenhum, já não conheciam o conceito de realidade, caminhavam, sem conhecer nada, apenas andavam sem saber… Durante muito, muito tempo… Os olhos não viam nada… Nenhum som entrava nas orelhas… Os pés não sentiam o chão… Eram como sonâmbulos. Um dos objetivos. O sítio, que queriam que existisse, apesar de saber… De saber sobre o que não se pode saber. A única sensação conhecida, era reler e re-ouvir o que existe nos cadernos… Máquinas acéfalas quase se tornaram…


Pedro Ribeiro

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