Hoje, fiz uma lista de livros, e não tenho dinheiro para os poder comprar. É ridículo chorar falta de dinheiro para comprar livros, quando a tantos ele falta para não morrerem de fome.
Mas também é certo que eu vivo ainda pior do que a minha vida difícil, para comprar alguns livros – sem eles, também eu morreria de fome, porque o excesso de dificuldades na vida, a conta, afinal certa, de traições e portas que se fecham, os lamentos que ouço, os jornais que leio, tudo isso eu tenho de ligar a mim profundamente, através de quanto sentiram, ou sós, ou mal-acompanhados, alguns outros que, se lhe falasse, destruiriam sem piedade, às vezes só com o rosto, quanta humanidade eu vou pacientemente juntando, para que se não perca nas curvas da vida, onde é tão fácil perdê-la de vista, se a curva é mais rápida. Não posso nem sei esquecer-me de que se morre de fome, nem de que, em breve, se morrerá de uma fome maior, do tamanho das esperanças que ofereço ao apagar-me, ao atribuir-me um sentido, uma ausência de mim, capaz de permitir a unidade que uma presença destrói.
Por isso, preciso de comprar alguns livros, uns que ninguém lê, outros que eu próprio mal lerei, para, quando se me fechar uma porta, abrir um deles, folheá-lo pensativo, arrumá-lo como inútil, e sair de casa, contando os tostões que me restam, a ver se chegam para o carro eléctrico, até outra porta.
in “40 Anos de Servidão”
Jorge de Sena
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